22 de março de 2012

Enquanto as horas vespertinas passavam

Enquanto as horas vespertinas passavam, os amantes despertavam do leve sono que as poucas horas dormidas lhes permitiram. Da janela viam-se águas plácidas e escurecidas pela ausência do Sol nascente, o comboio atravessava a ponte que os deixaria na ilha artificial criada séculos atrás por motivos misteriosos, ainda que a indigência e segurança sejam apontados como necessidades que assim o justificaram.

Ainda dentro da máquina a atmosfera pareceu mudar, como se o breu que apenas se deixava ver pela luz ténue da presente Lua Cheia fosse entrando pelas fissuras e entrecortes das chapas metálicas desta moçao solitária.

Chegados ao destino foram recebimos por madrugadores habitantes: várias gaivotas estridentes, que se ensinuavam como se denunciando delatores do tempo, a nossa hora de ocupar a cidade ainda nao tinha chegado diriam se as podessemos entender.

Tudo aqui era diferente!

Como se o espaço fosse outro e o tempo espesso.
Seria um espaço pestilento, ainda que o odor esperado nunca tivesse surgido, era um espaço pegajoso, como se o ar se pegasse à pele e às narinas invadindo-nos a cidade pelas entranhas!

Nao havia como fugir a esta atmosfera que nos engloba e traga.

O dia tardaria ainda em nascer mas os primeiros sinais de que era eminente foram os atletas madrugadores que aqui e ali apareciam e desapareciam por capilares sinuosos.

Com a percepçao toldada pelo sono ainda presente e lojas turisticas e tascas locais fechadas com graffitis a guardar as portas esta parecia uma cidade abandonada.

"Chegámos tarde!" Podia-se haver pensado! O efeito da hora tardia sempre foi dificil de separar do da hora prematura.

À medida que a cidade despertava e a actividade humana a aquecia a atmosfera que a sustinha neste limbo imaterial era mascarada, justificando, quem sabe, o tradicional tema desta localidade.

A Luz nascia, o locais surgiam, os visitantes também, a cidade despertava e os lampioes enublados adormeciam.

Tudo aqui era diferente!

A insistência do sono obrigou a uma sesta matinal. Enquanto ela dormia aninhada no colo dele, ele, conhecido das insónias, observava o pequeno largo onde pararam.
Sitio de pouco movimento casual era frequentado apenas por necessidade rotineira e entregas ritmadas dos transportadores dos pequenos carros do lixo - Que sistema curioso! - pensava enquanto observava as cargas e descargas destes carrinhos-de-mao adaptados.

O almoço da manha foi o bolo tradicional da regiao, ou pelo menos assim o chama o único pasteleiro que o fazia em toda a "regiao" - Fui eu que o inventei!" dizia. "Terás sido tu que o nomeou também!" pensavam.
Uma espécie de pao doce de pistachio que condizia em tudo, de facto, com a cidade. Com um interior verde pantano, tinha um sabor estranho que rapidamente se diluía num doce característico. Merecia o título!

Passearam pelas ruas e vielas, atravessaram canais e tiraram fotografias.
Como de costume, a idade nao se lhes passa e viviam o romance como desde o primeiro dia, mais que o primeiro dia, porque agora é sustentado por uma cumplicidade de olhares eloquentes e gestos indecifraveis. E aqui, nesta cidade reconhecidamente romântica, quer pela sua peculiaridade quer pelas suas tradiçoes e mistério o romance foi a nota que os distraiu do cansaço.

Viram igrejas douradas e subiram a torres, entraram em lojas e comeram gelados, comeram pizzas e compraram peças de vidro tradicionais.

A meio da tarde, enquanto sentados na margem de um canal admirando por um lado os transportes, por outro as esplanadas ela surpreende-se: - Viste algum carro? - nao, nao tinham visto nenhum carro durante todo o dia. A consciência de algo tao elementar e, naquele contexto tao obvio, fe-los parar de novo e pensar "Realmente, aqui só existem barcos!". Tinham visto barcos-do-lixo, barcos-ambulância, barcos-taxi, barcos-barcos, barcos-autocarro todo o tipo de barcos, nenhum carro, parado ou em movimento.

Tudo aqui era diferente!

Restabelecidas as forças e as ansias retomaram caminho, passada a novidade repetiram ruas, admiraram a paisagem com a calma do habitual e descobriram outros detalhes. Voltaram para trás e de novo para a frente. Era uma cidade labirintica onde se poderiam demorar semanas a percorrer todas as suas tranças retorcidas e estreitas, mas que num dia determinado se podem ver e conhecer os dois lados da transitada ponte Rialto.

O dia chegava ao fim, era tempo de voltar ao lado continental e a estranhamente primeira viagem de barco, e última desse dia, que substituiria o comboio nao se deixaria esperar.

Com estacas a fazer as vezes de traços descontinuos nestas águas baixas, assim eram marcadas estas auto-estradas marítimas.

Comeram pizza e beberam chardonnay blanc, para sobremesa, caipirinha, ou deve dizer-se para digestivo? existem sempre tantos nomes para as melhores partes de um todo! Nada mais podia ser estranho, o local justificava a comida, o romance o vinho e o tema do dia a sobremesa.

Há noite, sentados num tronco que balançava nos calços desequilibrados e com os pés na relva tremiam de frio, mas viam ao longe: os lampioes neblosos haviam despertado e marcavam um mural indistinto no horizonte.

Desta muralha negra pela ausência de luz saltavam e assobiavam fogos de artifício como que vindos da própria linha do horizonte. Celebrava-se o Ferragosto.

Assim termirnou o dia de registo, a continuaçao fica nas memórias privadas.

Foi tudo tão diferente!
Voltarao!